Professor de sociologia na Universidade de Berkeley, Califórnia, EUA, Manuel Castells ocupa hoje o cargo de diretor de pesquisa em uma Universidade virtual mundial, o Internet Interdisciplinary Institute de Barcelona. Essa experiência pioneira mobiliza 20 mil estudantes em 15 países para cursos unicamente pela Internet.
Le Monde - Em seu livro anterior, 'A Era da Informação', o senhor mostrou como nossas sociedades se organizam em redes. Hoje o senhor dedica toda uma obra à Internet. Por quê?
Manuel Castells - As banalidades e as falsas idéias que circulam na web me irritam. Dispomos hoje de elementos suficientes para demonstrar que a web não isola e tampouco é instrumento do poder ou do mundo dos negócios. Ao contrário. É espaço descentralizador e cidadão. A Internet é fenômeno econômico, social e político, mas não é tecnologia que traga uma solução global para os problemas da humanidade nem um sistema que crie desigualdades sociais.
Le Monde - O senhor insiste no 'espírito hacker' que marcou os primeiros anos da Internet. O que resta dessa cultura?
Manuel Castells - Quando falo 'hackers', refiro-me aos apaixonados por informática que inventam e inovam por prazer, e não 'crackers' que praticam o mal. Creio que restam muitíssimas coisas da cultura original da Internet. O próprio funcionamento da web, por exemplo, ainda é feito com programas de código aberto criados por essa comunidade. Dois terços dos servidores do mundo utilizam o sistema Apache, desenvolvido e mantido por uma rede cooperativa de informáticos. Ao contrário, as práticas da Microsoft me parecem avessas a essa cultura. A Microsoft é uma empresa genial na comercialização, sem inovações. Mas o que me parece mais fundamental é que a 'cultura hacker' hoje impregna grande parte da sociedade. Ela se difunde junto às novas gerações e não só nos campos tecnológicos. As organizações não-governamentais são boa ilustração disso. Elas utilizam capacidades de inovação formidáveis para deter a pobreza, vencendo o peso tecnocrático dos governos. Quanto mais uma sociedade é informatizada e dá economia do conhecimento, mais importante é sua capacidade de inovar no interior do sistema, com meios criativos. Essa é a cultura herdada da ética dos hackers.
Le Monde - Como o grande público se apropria da Internet e o que ele, por sua vez, traz para a rede?
Manuel Castells - A pergunta que se deve sempre colocar é a seguinte: uma tecnologia, sim, mas para fazer o quê? Nisso a Internet não difere das outras grandes tecnologias da história. Ela se difunde, portanto, mais depressa nos meios que a utilizam. Mas uma técnica se torna instrumento importante de práticas sociais somente quando a sociedade em seu conjunto tem necessidade dela para avançar. Hoje as pessoas constroem a web à sua imagem. É uma baderna, pois tudo coexiste na Internet: utilizações sociais, expressões políticas, rede de sociabilização pessoal, pesquisa de informações, movimentos associativos, mas também propaganda nazista, pedofilia e pornografia. Isso preocupa os políticos, pois esse espaço não pode ser totalmente controlado. Mal pode ser reprimido. O grande público tem, portanto, papel a exercer em seu desenvolvimento. Aliás, ele não se privou disso. Os internautas realmente produziram os bate-papos, os grupos de notícias, os fóruns... Os leilões online, a arte digital ou o download de música foram inventados, dessa maneira, e depois adotados por empresas.
Le Monde - O recente Fórum de Porto Alegre no Brasil mostrou as premissas de uma sociedade civil mundial capaz de se mobilizar por grandes causas. A Internet tem um papel significativo nesse processo?
Manuel Castells - Vemos surgir nesse momento os embriões de uma sociedade civil planetária. O papel da rede mundial é essencial, pois permite a existência em suas identidades locais de pessoas que vêm de culturas e horizontes diferentes. Existe uma sociedade civil que se estrutura melhor em nível mundial do que nacional. Hoje o interesse do público por problemas mundiais como os direitos humanos ou as questões ambientais fez surgir uma série de redes e de intervenções sobre as estruturas e as instituições que determinam a vida das pessoas. O interessante é que a sociedade civil tem por alvo o Estado para tentar obter mudanças em suas condições de vida. Ela não tem ponto de referência em um Estado global. Ela passa, portanto, pelos meios de comunicação que estão à sua disposição. As mídias, mas também a Internet são muito úteis, pois através delas os atores da sociedade civil criam uma sensibilidade que indiretamente influencia as instituições políticas. É assim que a Internet se transformou hoje em uma esfera política que não era antes.
Le Monde - Apesar dessa apropriação da web por um número crescente de internautas, o tema da divisão digital nunca foi tão importante. Por quê?
Manuel Castells - Todo mundo deveria ter direito a utilizar a Internet e ninguém deveria ser penalizado por questões de geografia ou de dinheiro. Além dessas considerações, há outros elementos que fazem que a divisão digital subsista. A rapidez na Internet é um deles. A maneira como os que estão na Internet molda a rede à sua imagem é outro. Quanto mais demorar a democratização da Internet, mais a web se desenvolverá em torno de valores que não são os do conjunto da sociedade. A difusão da Internet sobre o conjunto do planeta exigirá forte ação dos Estados, com ações públicas nacionais e internacionais.
As diferenças culturais, financeiras e infra-estruturais hoje são tais que podemos ter um terço do planeta estruturado ao redor da Internet e dois terços excluídos, com tudo o que isso significa em termos de acesso à informação ou aos recursos empresariais. O desenvolvimento da rede, que era exponencial, hoje chega ao seu limite.
(Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves) (Le Monde, Uol.com/Mídia Global, 1/6)
Le Monde - Em seu livro anterior, 'A Era da Informação', o senhor mostrou como nossas sociedades se organizam em redes. Hoje o senhor dedica toda uma obra à Internet. Por quê?
Manuel Castells - As banalidades e as falsas idéias que circulam na web me irritam. Dispomos hoje de elementos suficientes para demonstrar que a web não isola e tampouco é instrumento do poder ou do mundo dos negócios. Ao contrário. É espaço descentralizador e cidadão. A Internet é fenômeno econômico, social e político, mas não é tecnologia que traga uma solução global para os problemas da humanidade nem um sistema que crie desigualdades sociais.
Le Monde - O senhor insiste no 'espírito hacker' que marcou os primeiros anos da Internet. O que resta dessa cultura?
Manuel Castells - Quando falo 'hackers', refiro-me aos apaixonados por informática que inventam e inovam por prazer, e não 'crackers' que praticam o mal. Creio que restam muitíssimas coisas da cultura original da Internet. O próprio funcionamento da web, por exemplo, ainda é feito com programas de código aberto criados por essa comunidade. Dois terços dos servidores do mundo utilizam o sistema Apache, desenvolvido e mantido por uma rede cooperativa de informáticos. Ao contrário, as práticas da Microsoft me parecem avessas a essa cultura. A Microsoft é uma empresa genial na comercialização, sem inovações. Mas o que me parece mais fundamental é que a 'cultura hacker' hoje impregna grande parte da sociedade. Ela se difunde junto às novas gerações e não só nos campos tecnológicos. As organizações não-governamentais são boa ilustração disso. Elas utilizam capacidades de inovação formidáveis para deter a pobreza, vencendo o peso tecnocrático dos governos. Quanto mais uma sociedade é informatizada e dá economia do conhecimento, mais importante é sua capacidade de inovar no interior do sistema, com meios criativos. Essa é a cultura herdada da ética dos hackers.
Le Monde - Como o grande público se apropria da Internet e o que ele, por sua vez, traz para a rede?
Manuel Castells - A pergunta que se deve sempre colocar é a seguinte: uma tecnologia, sim, mas para fazer o quê? Nisso a Internet não difere das outras grandes tecnologias da história. Ela se difunde, portanto, mais depressa nos meios que a utilizam. Mas uma técnica se torna instrumento importante de práticas sociais somente quando a sociedade em seu conjunto tem necessidade dela para avançar. Hoje as pessoas constroem a web à sua imagem. É uma baderna, pois tudo coexiste na Internet: utilizações sociais, expressões políticas, rede de sociabilização pessoal, pesquisa de informações, movimentos associativos, mas também propaganda nazista, pedofilia e pornografia. Isso preocupa os políticos, pois esse espaço não pode ser totalmente controlado. Mal pode ser reprimido. O grande público tem, portanto, papel a exercer em seu desenvolvimento. Aliás, ele não se privou disso. Os internautas realmente produziram os bate-papos, os grupos de notícias, os fóruns... Os leilões online, a arte digital ou o download de música foram inventados, dessa maneira, e depois adotados por empresas.
Le Monde - O recente Fórum de Porto Alegre no Brasil mostrou as premissas de uma sociedade civil mundial capaz de se mobilizar por grandes causas. A Internet tem um papel significativo nesse processo?
Manuel Castells - Vemos surgir nesse momento os embriões de uma sociedade civil planetária. O papel da rede mundial é essencial, pois permite a existência em suas identidades locais de pessoas que vêm de culturas e horizontes diferentes. Existe uma sociedade civil que se estrutura melhor em nível mundial do que nacional. Hoje o interesse do público por problemas mundiais como os direitos humanos ou as questões ambientais fez surgir uma série de redes e de intervenções sobre as estruturas e as instituições que determinam a vida das pessoas. O interessante é que a sociedade civil tem por alvo o Estado para tentar obter mudanças em suas condições de vida. Ela não tem ponto de referência em um Estado global. Ela passa, portanto, pelos meios de comunicação que estão à sua disposição. As mídias, mas também a Internet são muito úteis, pois através delas os atores da sociedade civil criam uma sensibilidade que indiretamente influencia as instituições políticas. É assim que a Internet se transformou hoje em uma esfera política que não era antes.
Le Monde - Apesar dessa apropriação da web por um número crescente de internautas, o tema da divisão digital nunca foi tão importante. Por quê?
Manuel Castells - Todo mundo deveria ter direito a utilizar a Internet e ninguém deveria ser penalizado por questões de geografia ou de dinheiro. Além dessas considerações, há outros elementos que fazem que a divisão digital subsista. A rapidez na Internet é um deles. A maneira como os que estão na Internet molda a rede à sua imagem é outro. Quanto mais demorar a democratização da Internet, mais a web se desenvolverá em torno de valores que não são os do conjunto da sociedade. A difusão da Internet sobre o conjunto do planeta exigirá forte ação dos Estados, com ações públicas nacionais e internacionais.
As diferenças culturais, financeiras e infra-estruturais hoje são tais que podemos ter um terço do planeta estruturado ao redor da Internet e dois terços excluídos, com tudo o que isso significa em termos de acesso à informação ou aos recursos empresariais. O desenvolvimento da rede, que era exponencial, hoje chega ao seu limite.
(Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves) (Le Monde, Uol.com/Mídia Global, 1/6)
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